quinta-feira, dezembro 9

Para Yan


(Achei que lembra você e assim te faz lembrar Vitória)

"Observe. As janelas e as portas da casa se abrem porque retorna o vento sul. Uma rua deserta para sempre, mas só até onde a vista alcança. Observe. O menino abre os lábios para respirar; os olhos fundos e secos. Por dificuldade, ele então diz uma coisa, enquanto a lua continua se movendo. Observe o detalhe do olhar; de olhos fundos e secos. Observe então os dois. O menino com a cabeça levemente tendendo para o lado do ombro direito, os olhos fundos e secos. A lua continua se movendo. Observe o menino de olhos abertos. Este é o instante que Vitória perde todas as suas características geográficas, enquanto a 250 quilômetros, 25 anos antes, Hulda Berger deita-se no campo e vê as estrelas por cima e a escuridão. A luz continua se movendo. O menino, de lábios abertos, os olhos fundos e secos, respira com dificuldade, como se estivesse morrendo afogado. O vento empurra pela rua o chapéu com fitas. Este é o instante em que Vitória, a cidade infame, perde todas as suas características. A empregada abre a janela de seu quarto no 12° andar do edifício Kennedy e se joga no vazio. Este é o instante em que Vitória perde todas as suas características. Observe o menino de lábios abertos. Este é o instante em que o ramo de flores cai aos pés, enquanto a lua continua se movendo e o vento espalha cheiro de manacá pela cidade. Este é o instante em que a praça Costa Pereira se encontra deserta para sempre. Longe, muito longe daqui, o vento sopra. Este é o instante em que chove. Observe. Este é o instante em que o menino, de cabeça levemente tendendo para o lado do ombro direito, de olhos fundos e secos, tenta sorrir. Observe o olhar. Este é o instante em que se encaram. Este é o instante em que o vento abre as portas e as janelas da casa e bate a pitangueira de encontro ao portão. Observe. Este é o instante de madrugada para sempre. O cheiro de manacá espalha-se pela cidade. Este é o instante em que Carmélia M. de Souza e Xerxes Gusmão Netto esclarecem no bar alguma coisa a respeito da geração traída. Este é o instante em que nada mais há para ser dito. Observe. Este é o instante em que uma pessoa obrigatoriamente esquece, pelo simples fato de estar viva. Observe. Este é o instante em que se ouve o coração do mundo. Este é o instante em que o vento sopra, invadindo a cidade em seus quatro pontos cardeais. Observe. Este é o instante em que Vitória se parece com qualquer cidade do mundo, apresentando-se anônima para sempre. Este é o instante em que a lua continua se movendo. Este é o instante em que se ouve o coração do mundo. Este é o instante- observe- em que se encaram. Nada mais há para ser dito. Fim. Adeus, adeus, o navio que parte, despedindo-se, adeus, agora e na hora. Fim. Então se abraçam. Este é o instante para sempre, em que a praça Costa Pereira se encontra deserta de pessoas. Observe. Este é o instante em que, a 350 quilômetros, 35 anos antes, o fazendeiro engatilha a espingarda, faz pontaria e atira no cachorro que então late e uiva e"

"Ah eu te amo. Vitória, cidade infame, como Baudelaire disse de Paris. Estende o pulso, enfiando a gilete até sentir dor. O horizonte, ontem, sempre, amanhã. Então se abraçam. O vento sopra. É tão fácil adivinhar as coisas, é que eu havia bebido vinho. Tão simples viver, uma rua úmida, algumas flores. O cheiro de manacá espalha-se pela cidade. Quem suporta um dia inteiro de primavera. Nada haveria a ser dito. Então se abraçam. Nascera, fundamentalmente para caber no mundo. Este é o instante em que Vitória perde suas características geográficas, as únicas que possui, e então se parece com qualquer cidade do mundo; em cada rua, em cada esquina, no rosto de seus habitantes, Vitória então se apresenta anônima. Ouve-se o coração do mundo. É para sempre. Longe, muito longe daqui, as estrelas por cima. O vento sul sopra, como se fosse maio, ou talvez fosse. Então se abraçam."


Trechos de Blissful Agony de Amylton de Almeida. É uma mistura de romances que acontecem ao mesmo tempo no Centro de Vitória. Lindo a forma como ele descreve um cotidiano, cheio de acontecimentos e repetições triviais que compõe a vida de uma cidade. Levo para o PG e fico mais feliz com ele.

Beijão.


2 comentários:

parapluie. disse...

Me bateu uma saudade das ruas do centro desertas e do vento sul.
Mostrar isso pra mim numa hora dessas é quase uma covardia, não fosse tamanha beleza.

tegosto.

Caetano disse...

esse é o instante em que aflora o orgulho de morar no centro deserto da cidade. observe.

[se o autor conhecesse o samba da zilda..]