segunda-feira, dezembro 5

sobre emendas

É na madrugada que as cores vivas dão lugar a uma paleta de cinzas, e talvez seja o cinza que provoca o medo e guardam os tantos habitantes em casa, como se guardam objetos em gavetas. E então, é nesse momento que as linhas físicas que compõe a cidade se expõem de forma vulnerável e sem pudor. Os fluxos, desenhados por uma vida que habita, se transformam de acordo com a altura do sol e, quando esse desaparece o ritmo é outro, a cidade parece lenta, mas trata-se de uma lentidão que enfatiza uma intensidade. E nessas horas as relações do que é pele com concreto parecem mais fortes, numa sinergia que só a vulnerabilidade de todos os lados, pode permitir/obrigar. Mesmo que não existam lados.

Percorre-se essa cidade nessa madrugada com um corpo de bicicleta, do lado esquerdo toda a ilha de Vitória, do lado direito a baía de Vitória se alternando com construções que subverteram a desordem e deram as costas ao mar. E nesse caminho, a cidade se apresenta como uma seqüência de fragmentos. Cenas de um sábado afoito, em que cada fragmento guarda em si uma cidade e se guarda no corpo com imagens, cheiros, sensações. São fragmentos diversos, como crianças que moram nas ruínas do que sobrou daquele outro dia, que se abrigam dos restos do tempo, do espaço, das frestas do que o sistema lhe permitiu. Uma multidão saindo do show no Álvares, onde as singularidades por um minuto desaparecem e dão lugar a um desejo mútuo de compartilhar um mesmo som. É aquele banho de mar debaixo daquela ponte gigante, num dos visuais mais marcantes de Vitória, que consegue reunir num mesmo ponto o macro daquela construção com o micro do corpo que mais suscetível à noite, se banha correndo. Na seqüência dessa cena que é a cidade, do inverso ao verso, vem um monte de material empilhado, que parece um disco voador que acabou de chegar à ilha com promessas de um mundo melhor. Entenda como shopping Vitória, numa negação absurda dos fragmentos que fazem parte do contexto. E ainda esse que é composto por locais singulares e carregados de significados, tal como a curva da Jurema, numa cena próxima de bêbados e mendigos que antes se misturavam a população praiana, do forró do quiosque e do karaokê, mas que agora sobram das gavetas. Já bem na frente desse percurso, a cena é bastante diferente, uma multidão de adolescentes bebendo num posto e saindo de mais um show. Uma massa de gente de roupas apertadas e carros num padrão que faz parte de outro contexto que essa cidade suporta, mas parece outro mundo. Um dos últimos fragmentos do percurso e uma das imagens mais lindas, era um pescador passando debaixo da ponte de Camburi, sozinho, de branco, e em pé no barco contemplando uma imensidão que para ele é muito mais que paisagem.

Os fragmentos que essa noite apresenta são combinações de fluxos, corpos imergindo em séculos de camadas no território, onde várias épocas se embrenharam e deixaram seus registros, são minúcias num diário chamado Vitória. O corpo permeia os espaços, como os olhos permeiam um texto a ser lido. Ocupam os interstícios das camadas e do tempo e emenda os fragmentos, um a um, de uma forma sutil, mas que costurando também deixa seus rastros. O corpo permeia, se dilui e costura, camada por camada, fragmento por fragmento, e cria em si, a sua cidade.

Um comentário:

Brícia Moraes disse...

parece que acabei de "ler" uma foto panorâmica de Vitória. Adorei as conexões, Sasá.